um olhar sobre o design gráfico brasileiro hoje

texto publicado no site arteamerica.org

Um olhar sobre o design gráfico brasileiro hoje

Contexto socio-cultural

Para falar de design gráfico contemporâneo no Brasil, há que se analisar os alicerces sobre o qual nossa modernidade está se construindo. Desde sempre nós, brasileiros, fomos indagados e nos indagamos muito sobre a nossa própria identidade. Afinal, o que nos caracteriza de forma clara e sucinta e que se reflete em nossa produção cultural e material?

Os estereótipos são parcialmente confirmados: o povo brasileiro reconhece-se como um povo alegre, hospitaleiro, festivo, despreocupado, etc, mas nossas características não se restrigem à simpatia e acolhimento. O Brasil tem aproximadamente 190 milhões de habitantes, 8.514.876 km2 de extensão, fronteiras com 10 países, em torno 7.000 km de costa, e uma diversidade muito grande de paisagens, raças, climas, rostos.

Desde o início da colonização no Brasil, estivemos expostos a várias etnias e trocas culturais. A imigração em peso e as diferenças regionais de um país tão vasto como o Brasil, geraram uma diversidade cultural e étnica impressionantes, resultando numa cultura bastante híbrida, inclassificável.  Nossa identidade, sem dúvida, é a diversidade. Diversidade essa que nos agrega um diferencial construtivo, positivo e que nos possibilita pensar em novas formas de dinâmica social.  Enquanto a Europa vive uma onda de xenofobia e preconceito, o Brasil me parece ser, senão o melhor, um dos melhores países do mundo a lidar com a transculturalidade e a utilizá-la como combustível para o seu potencial criativo.

A mestiçagem, a diversidade de religiões, cultos, festas populares, que fazem parte de nossa cultura influenciam a sensibilidade e o olhar dos criadores. Características híbridas e ilógicas da cultura brasileira, que imprimem uma marca peculiar a essa diversidade, se dissiminam por nossa cultura material, criando soluções e gostos diversificados e indefiníveis.

Criamos e recriamos sobre preceitos e conceitos muito bem definidos por ideias e modelos de movimentos culturais internacionais, a partir de nossa própria realidade, remodelando-os de forma a encontrar soluções originais e às vezes até curiosamente incoerentes com os conceitos que serviram de inspiração. Nossa formação básica de design gráfico provém do racionalismo alemão. Como dizemos, somos netos da Bauhaus e filhos de Ulm, porém nossa história complexa, multifacetada, barroca, “contaminou” o fazer do design, na busca de uma identidade própria.

O movimento nas artes da década de 1920, chamado antropofágico, do qual Oswald de Andrade foi um dos maiores expoentes, foi inovador ao enxergar uma via de processamento das influências estrangeiras no nosso país, indicando que devemos escolher o que nos serve, descartar o que não nos interessa, e digerir à nossa maneira todos esses elementos. Gosto de citar o antropólogo brasileiro Hermano Vianna que diz que não há nada de totalmente autêntico em cultura, porque “a contaminação é a regra”

Como muitos de nossos vizinhos latinoamericanos, passamos por regimes militares violentos (o Brasil ficou sem eleições diretas de 1964 a 1984) e estamos nos recuperando, trilhando novos caminhos e ainda definindo modelos possíveis, adequados ao nosso desenvolvimento. O modelo de desenvolvimento predominante mundialmente, calcado no aumento desenfreado de produção e consumo, produziu resultados catastróficos, nos levou à deterioração do meio ambiente e ao esgotamento de recursos naturais, desequilíbrios sociais e crises econômicas.

O Brasil cresceu muito e se modernizou, principalmente a partir da década de 1970, alcançando hoje uma presença respeitável no cenário mundial. Porém o bolo não era dividido e nossa discussão girava em torno da avaliação do crescimento do PIB. Hoje enfrentamos o desafio de combater a desigualdade social, com todo o custo e conflito que isso possa provocar.

As distorções e mazelas da cultura da superprodutividade, do consumo histérico num mundo onde pessoas ainda morrem de fome, têm nos despertado para questionar que tipo de desenvolvimento nós desejamos.  Sabemos que grande parte da sobrevivência humana depende das nossas escolhas políticas.

Design, cultura e economia

O design, como postulado intelectual da industrialização, é um dos protagonistas importantes desse contexto histórico. Por isso, no seio da profissão, a autocrítica, a reflexão sobre o que vimos fazendo, que espaço temos, como trabalhamos, o que defendemos, e quais os caminhos desejados, se faz primordial.

Se antes buscávamos “o caminho do desenvolvimento”, correndo atrás do nosso atraso tecnológico em relação a outros países, hoje existe um resgate precioso de nossa raízes. Tecnologia não é mais um problema; temos recursos para o que realmente necessitamos e conseguimos pouco a pouco nos livrar de um complexo de inferioridade em relação aos ditos “países desenvolvidos”. O que mais se ouvia era que “o Brasil é o país do futuro” e agora estamos introjetando a ideia de que podemos pensar que o futuro já chegou, e é agora que precisamos ter energia para transformar. Enfrentamos o desafio de combinar alta tecnologia com uma nova maneira de pensar a nossa cultura e os nossos recursos.

Há uma frase circular, que adoto há uns anos, e descobri no piso de mosaico que circunda a torre do relógio da Universidade de São Paulo. Ela é de autoria do ex-reitor e jurista Miguel Reale e diz: “no universo da cultura o centro está em toda parte”.

Nesses últimos anos, tive a oportunidade de participar de congressos, conhecer lugares e conviver com comunidades de designers de culturas muito diferentes e percebi também como os países ditos em desenvolvimento, que possuem uma cultura autóctone bastante marcada, têm sido foco de interesse do primeiro mundo, e objeto de estudo dos alunos de escolas de design europeias.

Mas se há interesse pela cultura, pelos saberes e fazeres de lugares que antes eram desconsiderados, ainda existe uma relação de exploração e desigualdade, de modo que os produtos são desenhados nos grandes centros, a produção é feita na periferia e o produto volta para ser consumido pelos grandes centros (vide os produtos desenhados na Europa Central e produzidos na Europa Oriental, Índia, China, Vietnam, Paquistão, etc).

Outro tema que quero abordar é a relação entre design e democracia. Gui Bonsiepe diz que democracia é, para o neoliberalismo, a predominância do mercado como uma exclusiva e quase santificada instituição que governa todas as relações entre sociedades. [1] E se indaga em como podemos recuperar a noção de democracia no sentido de participação dos cidadãos abrindo espaço para a auto-determinação. Formulado de modo diferente, a natureza da democracia vai muito além do que o direito ao voto, da mesma maneira que liberdade é muito mais do que a possibilidade de escolher entre centenas de diferentes modelos de telefones celulares.

Em sua opinião, o design deve ser feito na periferia e não “para” a periferia, como resultado de uma espécie de atitude paternalista. O design de cada lugar deve ser fruto da prática local, uma vez que determinados problemas só podem ser solucionados no contexto local.

Tradição e tecnologia a serviço da cidadania e da defesa do meio ambiente

Abrindo um parênteses em relação ao design para falar sobre cidadania, a questões de empoderamento e autodeterminação estão muito bem representadas pelo caso dos índios Suruí, que vivem no estado brasileiro de Rondônia. Seu chefe, Almir Suruí, visitou em  junho de 2007 a sede da empresa Google Earth na California, a fim de fazer uma parceria para incluir sua região de 148 mil hectares, e adicionar palavras na língua falada pelos integrantes da tribo nos motores de busca da empresa americana.

Almir teria dito que o objetivo do acordo com a Google seria o de aumentar a visibilidade da área indígena e possibilitar melhor monitoramento, detectando os avanços das madeireiras sobre suas terras, contribuindo assim com o combate ao desmatamento.“O avanço da extração ilegal de madeira poderá ser evitado, já que essas imagens estarão disponíveis para visualização pública”.

Em troca das informações, o chefe da tribo conseguiu o compromisso do Google de que a empresa capacitará os indígenas para o uso dos computadores, além de treiná-los e enviar PCs. “No futuro, queremos nós mesmos sermos capazes de colocar essas informações no computador”, afirmou.

Esse acordo fez surgir muitas dúvidas e desconfianças sobre biopirataria e o governo brasileiro está agindo com cautela em relação à disponibilização de determinadas informações que são estratégicas, porém o caso ilustra muito bem o que pode vir a ser a combinação de tradição com tecnologia para o empoderamento dos cidadãos, a proteção da floresta e a defesa da qualidade de vida.

Design e artesanato

Se hoje em dia os designers brasileiros trabalham em colaboração com ONGs e o Governo no sentido de capacitar grupos de artesanato e cooperativas, possibilitando a perpetuação de tradições e a geração de renda para grupos marginalizados do mercado formal de trabalho, cada vez mais a cultura popular também tem sido fonte de inspiração para os designers. Segundo o estudioso Luis Alberto Nemer, “os nativos têm uma cultura somática (soma significa corpo em grego) e a sua produção artística provém desta interação sensorial com a natureza. Por isto, até hoje, toda a produção indígena é muito coerente: uma extensão da natureza através do fazer do homem”.

O arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, ganhador do Prêmio Pritzker, equivalente ao Nobel da arquitetura, em 2006, acrescenta: “o colonialismo produziu horrores porque não soube ler a experiência dos nativos”. E é desta experiência que devemos nos lembrar para descobrir nossa mais profunda identidade.

A prática de design gráfico e as incursões pelo universo do artesanato me motivam a buscar algumas explicações para os resultados das relações entre o design e o trabalho artesanal, espontâneo. Esse tema é muito polêmico, uma vez que coloca em confronto os diferentes pontos de vista do que vem a ser o design, que são, basicamente, a contraposição entre os que acreditam que qualquer objeto construído é produto de um pensamento projetado no resultado desejado, portanto produto de design, e os que vêem o design como uma atividade de projeto, intelectual, que está diretamente ligada à industrialização e racionalização da produção.

Independentemente da adoção de qualquer uma dessas posições, a própria preocupação com a atividade de artesanato aponta para um novo pensamento.

Octavio Paz, ilustra bem essa mudança de foco em uma afirmação antiga, de 1973: “A volta do artesanato nos EUA e Europa é um sintoma da mudança da sensibilidade contemporânea. É uma crítica à religião do progresso e à visão quantitativa do homem e da natureza. Não é fácil que os países subdesenvolvidos compartilhem desta desilusão (no progresso), mesmo se é cada vez mais palpável o caráter ruinoso da superprodução industrial. Ninguém aprende da experiência alheia.” 2]

Isso me remete a um episódio: quando estivemos no Icograda World Design Congress de Beijing, em 2009, ouvimos de um estudante chinês a reclamação de que não era justo que nós (os ocidentais em geral) pregássemos a sustentabilidade, restrições em processos de produção predatórios, etc.  O estudante alegava que eles precisavam crescer para poder depois poderem dar-se ao luxo de restringir-se a práticas menos predatórias que podem ter um custo imediato muito alto. Essa é uma visão aterradora, que precisa ser combatida sob pena de que atinjamos um nível de destruição irreversível.

Novos materiais e procedimentos

Um fenômeno original interessante, que tem merecido nossa atenção, é a descoberta e disponibilidade de materiais naturais inseridos na produção de design. É o caso da fibra de coco, por exemplo, que já vem sendo utilizada há anos na indústria automobilística, como estofamento de bancos de automóveis, assim como materiais provenientes do lixo industrial, como a casca de coco e palmeiras descartadas pela indústria alimentícia e o bioplástico, ainda bastante polêmico, feito de cana de açúcar, que começa a ser utilizado em embalagens.

No seio da preocupação com a descoberta de novos materiais está a questão da sustentabilidade: materiais de baixo impacto ambiental, reciclados e recicláveis, com otimização de recursos e que contribuam para o desenvolvimento social (a criação de empregos, qualificação de mão-de-obra e remuneração justa).

Há empresas adotando, por exemplo, a industrialização de produtos de limpeza mais concentrados, de maneira a fazer embalagens menores que economizam água, material plástico, transporte e armazenagem.

O mesmo ocorre com a impressão: há a preocupação em utilizar tintas atóxicas e menos área de impressão nas embalagens de grande escala de produção, que significa menos uso de material e menos poluição.

O desenvolvimento de produtos sob a ótica da sustentabilidade abraça a simplicidade, a economia de variedade e quantidade de materiais, a durabilidade, a otimização dos processos de manufatura.  Ou seja, simplificação que implica em redução de custos de produção, de preços, de consumo, e de lucratividade, constituindo um paradoxo em relação à economia baseada no lucro financeiro, no aumento da produção e do consumo.

Qual será o futuro?

Temos muitos desafios, mas também temos um caminho fértil pela frente, podemos formular novas equações visando um desenvolvimento mais saudável.  Esse já é um discurso corriqueiro em alguns lugares da América Latina, não só no que diz respeito ao design, mas também ao modelo de desenvolvimento como um todo.

Em meio a essa discussão, as políticas públicas de design têm buscado seguir parâmetros definidos para toda a cultura, pois o design faz a ligação entre o mundo imaterial e o material e é o link central entre os mundos da arte e do comércio. Está comprometido com a melhora da forma e da função e tem um potencial grande no que diz respeito à melhoria da qualidade de vida.

Segundo um recente relatório do UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development) em parceria com a South-South Cooperation Special Unit – PNUD/ONU), o design faz parte de um dos 4 núcleos de atividades estratégicas da chamada Economia Criativa, cujo principal diferencial é que ela promove desenvolvimento sustentável e humano e não mero crescimento econômico.

A  economia baseada na criatividade é estratégica não apenas para os negócios criativos, mas para todos aqueles que ganham competitividade por intermédio do que chamamos “culturalização dos negócios”: valor agregado a partir de elementos intangíveis e culturais.

Segundo a Convenção da Unesco sobre Diversidade Cultural, os bens culturais são únicos, singulares e diferenciados, carregam uma alta carga simbólica, imaterial, e são o rico patrimônio acumulado de populações, de forma milenar, centenária, resultado de fluxos, fruto de aprendizados e acúmulos que se deram em muitos e muitos planos de vida.

E o design tem a capacidade de participar dessa experiência singular do viver, construindo situações e objetos que surpreendem, emocionam e funcionam, comunicando, materializando experiências, saberes, que são o patrimônio imaterial de um povo.  Ele se faz democrático quando é acessível e, mais ainda, quando surge de um espírito e de uma necessidade coletivos.

É inevitável frustrar-me ao perceber que o design que ainda é mais festejado não participa da vida do cidadão normal. Os objetos de design viram verdadeiros fetiches enquanto que designers anônimos trabalham diariamente nas fábricas para produzir os utensílios de nosso dia a dia: liquidificadores, chuveiros, automóveis.

Além de questões de identidade, o design brasileiro ainda enfrenta o desafio de deixar de ser um produto de luxo, ser reconhecido mais extensamente como ferramenta para o desenvolvimento, participando mais da vida do cidadão comum, prestando serviços à comunidade, facilitando à população, ainda bastante iletrada, o acesso à informação. Esta é uma tarefa de nossa responsabilidade, para a qual precisamos trabalhar.

[1] Cfr. http://guibonsiepe.com.ar/guiblog/
[2] Octavio Paz: In/mediaciones. Seix Barral, Barcelona, 1979.

Ruth Klotzel